O
Amigo Guarda- roupa
Ainda posso me lembrar daquele dia
como se fosse hoje você era ainda uma criança, ganhou seu primeiro quarto e sua
mãe foi contigo na loja fazer compras para mobiliar a casa, até que você me viu primeiro, e não quis olhar uma
segunda opção, Tinha dito a sua querida mãe quanto eu era lindo. Sabe, fazia
tempo que eu estava ali, esperando que alguém um dia viesse me buscar pra me
levar pra casa, chegava sempre um mais bonito e interessante na loja do que eu,
mas eu sempre era deixado de lado até você me encontrar. Lembro quando cheguei
a sua casa entrei naquele quartinho pequenino, mal cabia eu e sua cama. Ficamos
tão amigos, você adorava se olhar no meu espelho, eu ficava admirando seu sorriso,
e quanto era sua alegria e ainda criança com tanta vaidade. Tinha umas gavetas
perto dos meus pés ali você guardava algumas roupas e seus pares de meias, às
vezes misturadas com doces e balas que você escondia pra sua mãe não ver que
comia aquelas bobagens antes das refeições. Quantas broncas ela te dava não é
mesmo? E quando você me rabiscava você ganhava umas surras, eu sei que você não
fazia por mal, esta era sua maneira de interagir comigo por isso eu não me
importava, com aquelas canetas e coisas pontiagudas me arranhando, e das vezes
que você queria se esconder pra não apanhar, era no meu interior que se
escondia. Ali tu te sentias seguro. Porque eu te protegia. Você ficou tão
apegado há mim, que mesmo quando entrou na adolescência queria eu por perto,
ganhou um quarto maior e me levou pra lá, quase não cabia nada mais em mim,
eram tantos cabides, presentes dentro e fora, os velhos brinquedos os CDs. Nas
minhas portas, pôsteres de artistas, adesivos colados então!Nem se falam! Eram
por toda parte, eu gostava, pois fiquei até colorido! Algumas vezes você colava
chicletes mascados em cima de mim. Os anos passaram você encontrou alguém
começou namorar guardava os presentes e dividia suas roupas com seu amor no
espaço que sobrava. Um tempo depois você casou, comprou mobília nova casa nova,
mas eu fui junto, que bom! Fiquei feliz, apesar de ficar num quarto de
solteiros, de vês em quando você entrava lá para colocar uns lençóis limpos.
Anos mais tarde veio o primeiro filho do casal, então tive que mudar de novo de
quarto, eu fui para outro só para hóspede improvisado numa parte da residência
que ainda estava em obras, às vezes você vinha me ver, olhar em meu espelho já
manchado e amarelado com o tempo. Você cuidou de mim enquanto podia, mas os
anos passaram, e os móveis novos estavam sempre chegando, nada com a mesma
qualidade que eu tinha apesar da minha cor marrom e desbotada e mesmo no quarto
de hóspedes eu já não combinava com nada, suas visitas e parentes não tinham o
mesmo cuidado que você e sua mãe tinham comigo, acabaram quebrando uma das
minhas portas e o espelho também, sem falar das brincadeiras e deboches quando
diziam que eu era só uma coisa velha e feia. Pois é, você acabou concordando,
mais ainda não foi desta vez que você se desfez de mim, fui morar no depósito perto
da garagem e lá não eram mais roupas que você guardava, e sim ferramentas e
muitos trecos. No tempo que eu fiquei dentro da casa pelo menos você tirava a
poeira de cima de mim, e eu podia te ver de vez em quando, mas lá no depósito
eu raramente lhe via. Só quando estragava um cano ou coisa parecida, ou então
quando de longe conseguia observar você entrar em seu carro, mas como tinha
empregados você quase nem passava por lá. Eu lembrava os anos que passaram quando
você se escondia em meu interior, depois só quem entrava aqui era um rato fujão
que roeu parte da minha madeira. Mas ainda bem que colocaram veneno e ele
morreu não agüentava mais ele me arranhando. Mas o rato e os cupins não foram
meu maior problema. Um dia você deu uma geral no depósito e naquele dia fiquei
desolado, mas eu entendia, eu já estava tempo demais na sua vida, e acabei
sendo um incômodo, mas você ainda teve o bom senso de colocar eu com jeito lá
na frente da casa para o lixeiro me levar, Porém um catador de bugigangas
chegou a tempo de me socorrer e me levar pra casa dele, coitado ele não tinha
nem onde colocar roupas. Apesar da grande saudade que eu sentia da nossa
companhia, eu me via um pouco feliz, pois já
não estaria mais num depósito. Porém foi questão de tempo, pois com a
vida miserável daquele indivíduo eu não ia durar muito ali, e como eu estava muito
ferido pelas constantes mudanças e pancadas, com minhas portas caindo aos
pedaços, cheios de cupins pés quebrados e todo roído, não houve outra escolha a
não ser ir pro lixo. Durei alguns meses por ali, até se desmontar todo de tão
cansado. Fui parar num lixão. Parte de mim se deteriorava com a chuva a outra
virou carvão numa padaria. Eu não sei direito o que eu sou, se apenas alguns
restos de madeira ou serragem e fuligem. Mas já não importa mais só sei que
quando você sentir saudades da sua infância e quiser recordar dos bons tempos
que passou comigo, faça uma visita a sua velha mãe e ela certamente ainda terá
guardado uma foto sua com seu velho amigo guarda-roupa.
(Altair Feltz)
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